Uma cachoeira de sensações estranhas

MP900181805Balançar-se para cá e para lá geralmente é considerada uma das características mais marcantes das pessoas no espectro do autismo. Isso acontece, segundo os estudiosos, porque se trata de uma maneira de o autista se sentir equilibrado após uma série de estímulos externos pelo qual ele tenha passado e que o acabam sobrecarregando. Desse modo, balançar o corpo seria quase como um meio para “filtrar” esses estímulos e assimilá-los melhor. Se é realmente este o propósito de se balançar, não sei dizer, embora faça bastante sentido.

O fato é que não me recordo de alguma situação em minha vida em que essa característica tenha sido destacada, ou pelo menos mencionada por outra pessoa. Até cheguei a fazer isso, admito, mas apenas em momentos específicos. É como se não funcionasse tanto para mim quanto funciona para os outros. É possível que eu tenha encontrado outras formas de me sentir melhor depois de ter sido “sobrecarregado” – e hoje que me entendo melhor acredito piamente nisso. Mas isso não quer dizer que eu não tivesse outras manifestações daquilo que chamam de “conduta motora repetitiva” [se é que balançar o corpo se enquadra nessa categoria. Se não for o caso, relevem. Sou (quase) leigo no assunto; só sei do que vivo].

Como acontece com qualquer criança, autista ou não, algumas situações faziam com que eu me sentisse feliz, triste, com medo, confuso, desconfiado, empolgado, etc. E isso tudo, geralmente, vinha em forma de uma enxurrada de sensações com as quais eu não sabia ou não conseguia lidar, pelo fato de que não conseguiria definir e entender o que eu estava sentindo. Isso, por sua vez, talvez ocorresse porque eu não era capaz de identificar estes mesmos sentimentos nas pessoas ao meu redor. Eu não podia perceber o que elas sentiam somente por meio das suas expressões faciais. Foi assim por muito tempo e até hoje, imagino, tenho certa dificuldade. Dessa forma, ao não ser capaz de “ler” e entender os sentimentos alheios, eu não tinha quaisquer referências para compreender os meus próprios.

As sensações desconhecidas, fossem boas ou ruins, me provocavam reações nem um pouco comuns ao que podia ser considerado “normal” pelas pessoas. Assim, quando ficava feliz ou satisfeito – ganhar um presente, saber que finalmente iria a um lugar que desejava ir, comer algo que estava com vontade –, minha reação era, basicamente, bater palmas, bater as mãos nos joelhos ou esfregá-las nas pernas e depois bater palmas outra vez, repetindo isso inúmeras vezes até que houvesse alguma interferência. Era algo espontâneo, mais forte que eu; quando me dava conta, já estava fazendo isso. Entretanto, para as pessoas, lógico, se tratava de algo muito esquisito. Na verdade, até hoje não sei o que exatamente elas pensavam sobre esses meus gestos. Mas sei, e muito bem, o que elas faziam quanto a isso. Na família, principalmente, costumavam me imitar ou me lembrar disso quase sempre. Na escola, não lembro de ter acontecido com tanta frequência, mas me recordo de alguns colegas terem perguntado vez ou outra por que eu fazia aquilo. Por um ou por outro motivo, por volta dos 10, 11 anos de idade comecei a perceber que aqueles gestos eram considerados estranhos pelos demais. E assim, como foi com várias outras coisas, passei a escondê-los ou, quando não era possível, disfarçá-los o máximo que pudesse. Não foi fácil, mas com o tempo fui me adaptando, até chegar ao ponto de no máximo esfregar as mãos nos joelhos, num gesto tão discreto que quase sempre passava despercebido (embora dentro de casa, quando estava sozinho, eu me liberasse do peso de ter que me controlar).

Quando estava nervoso ou ansioso os alvos eram minhas mãos. Uma se esfregava à outra, depois se contorciam para lá e para cá, a esquerda apertando a direita com força e vice-versa. Com isso, no entanto, ninguém nunca implicou, pelo menos não o suficiente para fazer com que eu tivesse que começar a disfarçar. Se as pessoas não percebiam ou simplesmente não julgavam relevante o bastante para comentar sobre, já não sei dizer.

Por fim, a reação mais problemática de todas: a provocada por minha sensação de tristeza, medo ou irritação. Sobre essa nunca houve qualquer comentário ou piada. O motivo é simples: eu jamais fazia isso na frente das pessoas, me limitando a explodir em casa, no máximo (e ainda assim nem sempre) diante da minha mãe. Basicamente, eu precisava me autoagredir, da maneira que fosse, o que era às vezes — aí sim — acompanhado do típico balançar o corpo. Era beliscão no braço, na barriga, nas pernas, esfregão nos braços como se quisesse arrancar toda a pele deles e, eventualmente, tapas (cuja intensidade dependia do que eu estava sentindo) pelo corpo todo. Por sorte nunca cheguei a me machucar de maneira grave. Mas é um instinto com o qual ainda tenho de lidar algumas vezes.

Imagino que este último caso esteja relacionado ao que chamam, em inglês, de meltdown — não sei como seria o termo em português; talvez ‘crise’, como sugerido pela minha psicóloga. Essas reações violentas vinham, quase sempre, como resposta a algo que eu havia vivenciado e que, no caso, tinha feito me sentir mal: uma quebra inesperada de rotina, uma frustração por algo que eu esperava muito não ter acontecido, uma situação qualquer na escola. Porém, independente de onde fosse o ocorrido, minhas ‘crises’ só aconteciam em casa. Se algo desagradável acontecia na escola, eu me aguentava até chegar em casa, e lá explodia. Não sei explicar a razão disso, mas talvez fosse porque em casa me sentia seguro o bastante — e longe da vista de estranhos — para fazê-lo.

Ainda aproveitando o tema, alguns pais me perguntaram o que eu fazia quando sentia que ia ter uma ‘crise’. A resposta pode parecer simplista demais, mas posso dizer que funcionava na maioria das vezes. Foi algo que acabei descobrindo sozinho, embora com alguma influência da minha mãe, imagino. No caso, quando começava a me sentir mal ou “desorganizado“, procurava algo que me agradasse — geralmente relacionado a um dos meus interesses específicos. Assim, ia aos poucos me sentindo melhor, aquietando aquelas sensações todas e, consequentemente, voltando a um emocional mais estável. Depois de algum tempo, o simples fato de tentar pensar sobre algum dos meus assuntos preferidos já era suficiente para me deixar bem (tanto que mantenho a prática até hoje). Fica, portanto, a dica; por mais que ela não seja eficiente em casos extremos, vale a pena tentar!

11 pensamentos sobre “Uma cachoeira de sensações estranhas

  1. Eu queria que a minha filha me dissesse como se sente, pq sinceramente não me importo nem um pouco com que os outros vão pensar, só com os sentimentos dela e se algumas coisas que ela faz trazem um pouco de conforto eu gostaria de entender, pq quando eu pergunto se ela quer que eu chame a sua atenção ela diz que sim pois não quer parecer estranha, mas eu não sei até onde essa resposta é pra tentar me agradar ou se é realmente o sentimento dela… 😦

    • É complicado mesmo, Manuela. Há a possibilidade de ela não dizer exatamente o que sente (eu mesmo fiz muito isso, e ainda faço). Mas tudo vai de você conversar com ela e mostrar o quanto ela pode confiar em você. Por mais que ela já saiba disso, sempre é bom reforçar. 🙂
      Eu hoje dificilmente escondo algo da minha mãe, que posso dizer que é a pessoa em quem mais confio. Isso vem com o tempo também. 😉

      • É, Jacob, eu não me canso de falar o quanto ela é amada e o quanto ela pode confiar e contar comigo pra tudo. E quando eu pergunto alguma coisa a ela, eu insisto várias vezes em que ela me diga se aquilo é o que ela quer ou o que ela acha que eu vou gostar se ela me responder… Deu pra entender?!?! Obrigada pela sua resposta. Eu queria saber se você tem noção da importância vital dos seus posts pra pessoas como eu?!?! Isso que vc faz é um bálsamo pros nossos corações, funciona melhor do que a minha terapia! O seu blog é de um valor imensurável!!! Por favor, não pare nunca de escrever, vc o faz maravilhosamente!!!! Abraços fraternos.

      • Entendi sim, Manuela, e é esse mesmo o caminho. Assim, com o tempo ela vai confiar em você mais e mais. Não se preocupe. 🙂
        Eu fico muito feliz, mesmo, de saber que o blog tem servido de ajuda e apoio pra vocês. Como eu disse, eu o criei com essa intenção mesmo. Eu não vou parar de escrever, enquanto continuar vivo rsrs Muito obrigado, mais uma vez! Abraços!

  2. Jacob, parabéns pelo texto, parabéns pela página, continue em frente. Teus relatos trazem conforto a muitos pais de autistas.
    Gostaria de saber o que tu sente (ou sentia) quando faz a auto-agressão. Alívio? Dor? Porque tentar sentir dor? A auto-agressão é muito difícil de entender, especialmente para os pais que querem zelar ao máximo pela integridade dos filhos.

    • Obrigado, Rafael! Fico realmente muito feliz de saber que estou conseguindo ser de alguma ajuda. Essa é a minha intenção com o blog.
      Quanto à autoagressão, eu não sei explicar. Era (é) uma forma de aliviar a “tensão” causada pelo excesso de estímulos ou coisa assim. Não é que eu gostasse de sentir dor (na verdade não sentia muita quando fazia isso), mas como não sabia lidar com aquele excesso, muitas vezes era a única forma que encontrava pra me sentir melhor e menos “sobrecarregado”, já que não iria bater em ninguém, muito menos descontar em objetos, apesar de que isto acontecia vez ou outra. Entende? Não era pela dor em si, mas sim porque era o modo (problemático e errado) de equilibrar aquelas emoções todas. Por isso uma das minhas sugestões para quando as crianças estão em “crise” é que os pais ofereçam algo de que elas gostam bastante, de preferência relacionado aos interesses que elas têm. Assim elas aprendem que uma maneira melhor de aliviar esses excessos é fazendo/lendo/vendo algo que gostam bastante. Sei que nem sempre pode funcionar, mas não custa tentar.
      Abraços, e obrigado pelas palavras e pela visita! 🙂

    • Obrigado, Betty! Gosto muito de escrever, desde pequeno. E minha ideia é essa mesmo: aproveitar esse ‘dom’ para poder ser de alguma ajuda. Aliás, dei uma olhada no seu site e vi que é escritora. Muito legal! Se não tiver problema vou adicionar o endereço à lista de blogs/sites que recomendo. Abraços, e obrigado pela visita!

      • Obrigada Jacob. Adorei mesmo. Quem me recomendou vou a Vanessa. Eu sou escritora sim e adoro incluir em meus livros poesias, textos e trabalhos interessantes de outras pessoas. Qdo li o seu texto, logo pensei em escrever um livro, onde vc possa expor alguns dos seus temas escritos. Claro, se vc quiser! AS pessoas precisam te conhecer!!! Um abrao amigo. Betty

        Date: Fri, 19 Apr 2013 17:43:47 +0000 To: bettymonteiro@hotmail.com

  3. Engraçado Jacob, lendo sobre Uma cachoeira de sensações estranhas fiquei pensando no meu Luan…pra mim isso tudo é muito natural hoje em dia, é muito familiar isso tudo que você escreveu, lidar com as emoções, eu vejo o sofrimento do meu filho quando ele se frustra, e não consegue chorar e fica com os olhos vermelhos e as pálpebras inferiores inchadas eu já sei que aconteceu algo que pra ele não foi bom, converso e deixo ele se abrir devagarinho…quanto a autoagressão eu procuro evitar que ele se aborreça a ponto de chegar a isso, mas já aconteceu algumas vezes. Estou adorando seu blog, parabéns!

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